Como já estava apresentada, as histórias começaram a ir e vir com mais naturalidade e entendimento. Cada vez que Sra. Miles apertava os dedos naquele livro, o pequeno corria em sua direção já pedindo a próxima história, havia histórias já não mais contadas, já nem mais lembradas; mas a senhora fazia questão de revive-las com desdem! Aquela história, se lembro bem, era sobre uma criança. Bela criança, forte e risonha; como todas as outras alí do parque. Mas aquela, em especial, não era nômade. Vivia no parque sem rumos ou caminhadas. Acho que seu nome era Leoni.
Vestindo as mesmas roupas desde os cinco anos, agora aos dês, a roupa fazia-se incômoda; apertando nas axilas e na virilha. Tinha belos cachos negros e olhos tão escuros quanto os cabelos. Pela escuridão destes às vezes era difícil de identificar a tristeza neste olhar; mas acredite, era imensa! No sorriso faltava-se dentes, ou eram tão podres que ninguém os enxergava. Mas mesmo com a solidão, com a frieza e a fome, dizia-se feliz; de fato fosse, se não fossem as lembranças. Tinha suas tardes repletas de brincadeiras de criança, de vez em quando até ganhava presentes dos pequenos burgueses. Aproveitava cada segundo de sua infância, mais que aquelas crianças aproveitariam sua vida inteira.
Mas já aos dês, as mães das crianças do parque não queriam um menino sujo e pobre, que era Leoni, para brincar com seus filhos. Então teve de dizer adeus, um por um, aos seus amigos do parque.
Agora só, balançava-se na branca cadeira de balanço do parque, olhando timidamente às crianças que corriam e berravam em gestos excitantes, que o fazia querer pular junto à elas. Mas torceu os dedos nas correntes da cadeira, apoiando sua testa no braço sujo de lama. Segurou o soluço e o pranto; sorriu.
Na manhã que antecedia o seu aniversário, esperava contente a 'moça da padaria'; senhora gentil que sempre lembrava de lhe trazer o que restava de pão, de vez em quando até de alguns doces. Esperou com disciplina militar, ereto e atento. Até ouvir um latido, ou um grunhido, algo que se assemelhava com o abate de um animal. Correu até alcançar os olhos ao som; era um filhote largado nos arbustos, com ferimentos leves. Segurou-o calorosamente e aconchegou-o em suas pernas, para então esperar a 'moça da padaria' que já se via de longe o vulto.
O cãozinho que recebeu o nome de Tarot, foi a nova alegria de Leoni após a ida de todos os seus amigos. Era tão grato pela companhia, que dividia sua comida com severa igualdade. Passaram dias de muito conforto e felicidade; um laço muito superior à raça, ou sangue, havia se formado entre o garoto e seu cão.
Era tarde da noite, a 'moça-da-padaria' não vinha fazia uma semana. A fome estava matando o garoto, mas o que estava realmente matando-o era o cão doentio que piorava à cada dia. Assistir a dolorosa morte daquele animal era nauseante! Por uma semana o cão agüentou com a água e os restos de comida que o garoto procurava pelos lixos de casas e restaurantes. Mas Leoni temia que a comida pudesse piorar o estado do cão; ele não suportaria vê-lo morrer, debruçado em seu leito. Segurou Tarot pelo peito magro e ossudo, cobriu-o com o único manto que tinha para se esquentar e caminhou pelos bairros da cidade, num vento de rachar o queixo. A casa era espaçosa, com um portão alto demais para que Leoni pudesse trepa-lo. Assegurou-se de que os donos estivessem presentes, tocou a campainha duas vezes e correu; correu sem olhar para trás, com os olhos transbordando de lágrimas que, mesmo com todo aquele vento, não secavam.
Já era o quarto mês após aquele dia, mas Leoni continuava a se esconder entre o salgueiro. Não falava desde então. Nem era possível dizer se piscava, ou respirava. Ouviu-se risadas do outro lado do tronco, e então os olhos da voz encontrou-se com os dele. Então gritou de pavor, um grande susto por ver um cadáver sentado à brisa do salgueiro. Outro olhar veio ver, era a 'moça da padaria':
-Meu Deus!! Leoni? És tu?
Os olhos dele quase se quebraram ao alcançar os dela. Nada disse, não conseguia.
-Levar-te-ei para minha casa! Oh, graças a Deus estais vivo! Quanto me preocupaste!
Mas quando ela ia segurando-o pelas palmas secas, ele se comprimiu nas raízes daquela árvore. Recolheu sua mão até os joelhos e os apertou contra o peito. Não era medo, estava é sem vontade de viver, ou de receber piedade. Como a 'moça' percebeu o desinteresse, sentou-se ao lado dele e o abraçou. Além da comida, ela sempre confortava e conversava com Leoni:
-Eu sinto muito por não ter vindo vê-lo esses dias. Eu viajei para o velório de minha falecida mãe. Entrei-me em um mar de agonia e tristeza, nem pensar nos que, ao redor, eu afetava.
Os olhos de Leoni começaram a arder como fogo.
-Imagino como deva ter se sentido; abandonado. Mas acredite em mim, a dor de ser abandonado é tão horrível, maldita e avassaladora quanto a de abandonar.
Neste instante os olhos derreteram-se num mar, escorrendo pelas bochechas o orvalho salgado da íris, da pupila, do semblante. Os gemidos soavam por todo o parque, o nariz escorria pelo braço da moça, enquanto a mão do garoto não parava de apertar a blusa dela.
-Eu sinto muito, Tarot!! Eu sinto muito! - O garoto soluçava e gritava em gemidos.
"O que dói mais: abandonar, ou ser abandonado? Tarot, sua dor era tão forte quanto a minha?"
-Perdoa-me, por favor- Perdoa-me!! Eu fui egoísta só pensando na minha dor! Perdoa-me!!
A Sra. Limos não esteve presente na demolição do parque por motivos sentimentais; mas sentira muito sua falta. Desde aquele dia, ela o acompanhara, cada paço, tentando ajuda-lo ao possível; mas no fim, era ele quem a ajudava. De vez em quando uma lágrima escorria sua bochecha, mas logo as corava e sorria; como era triste seu sorriso, dizia a Senhora Limos. Leoni Já tinha lá seus vinte e cinco anos e nunca mais vira Tarot, pois os donos da casa estiveram de mudança logo depois de adotar o cão. Mesmo assim, ficou feliz por ele, sempre pensando em como deveria estar com toda aquela comida, deveria estar bem feliz.
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